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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Rímel


Andava. Braço direito igual a um pêndulo e o outro elevado na altura da boca. Fumava compulsivamente. Caminhava, pele feita de titânio: entortaria a ponta de qualquer punhal. As lâminas escondidas entre os dedos gritavam RES PEI TO. Exigia. Dona de um corpo expurgado por homens equinos que lhe rasgaram as têmporas, gastaram sua genitália, avassalaram sua alma. Respeito.

Naquele domingo, o que foram as asas de galinha recheadas com alho, coentro e cebolinha? Especialidade de Neiva, a mais velha. Não conheço o sabor dominical. Nunca soube. Eram os dias mais rentáveis da semana, dia de caminhoneiro viajante descansar por mais tempo. Dia de servir carne de galinha criada no quintal. Dia de gozar a Deus sobre os filhos esposas e famílias. Ao homem, sentinela de prazeres egóicos. Nada mais. Inácia, que hoje o tem como filho, aconselha: coma, a costela vai esfriar. Não tenha medo, não creio que Eva nasceu de Adão. Amor não escolhe lado, filho. Seja completo, feliz.

No pano de prato surrado marcando o calendário de um ano passado, Edivaldo limpou do rosto o rimel que desenhava sua pele.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Anti idade


Que luz sincera. Quando parei em frente ao espelho, pensei até que nem precisava ir à terapia naquela tarde, de tanto que de mim extraia a claridade. Alguns cravinhos que não tinha percebido, umas pintas novas, alguns pelos esquecidos na sobrancelha. Esse cabelo que não cresce! Até que não tô muito velha... Apesar de reclamar demais da vida. Devia me preocupar menos com as contas: TV a cabo que nunca tem um filme bom passando. Ainda não levei meu histórico na faculdade. Todos os dias penso que tenho que terminar esse curso de jornalismo. Carrego essa preocupação [como se estivesse andando pelo deserto com uma mochila de 100 quilos nas costas], tem uma pilha de louça pra lavar. Quem sabe se eu tivesse uma máquina de lavar louças não resolveria pelo menos esse problema? Tô velha demais pra minha idade. Mas a pele até que tá boa ainda. Só vou admitir que preciso usar Renew Anti Age depois dos trinta. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Um bloco de texto


Se sentia rachada, com a cabeça estourada na sarjeta como naquelas cenas de filmes que o cara pega o outro numa briga, faz ele deitar na pirambeira da calçada, abre a boca dele na sarjeta e chuta a cabeça dele. Não tem erro. Estoura a boca, quebra tudo. É assim que se sentia, meio surrada demais pra um dia chuvoso, cheio de nuvens, nublado, chato pra caramba com o café gelado.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Invasão


Às vezes, a vida vem e me invade escandalosamente. A simples consciência disso me emociona e eu choro. Mas não é um choro de alegria, tampouco d tristeza. É como aquelas chuvas de verão, que desaguam como quem quer lavar as ruas, aguar as pastagens ou dar um pouco de água pras gentes que tem sede. Depois, ela segue seu rumo.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Poema receita - Torta da Felicidade


Alho poró, cogumelo, cebola picadinha e pimenta preta em pó
Junte o tomate tinindo de vermelho aos demais temperos:
Tomilho, sálvia e sal

Adicione à esta mistura colorida a carne moída
Não seja ponderado com o molho inglês
Tampe a panela, aguarde uns quinze minutos e experimente uma vez

Para a massa, basta misturar a farinha, a manteiga e sovar com firmeza
Deslize gentilmente na forma e preencha com o recheio com sutileza
Por fim, salpique com queijo brie e leve ao forno

Em 20 minutos, está pronta a torta, antônimo da tristeza

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma outra safra

Estômago vazio
Fome de contentamento
Empanturrado de incertezas

Farta de idealizações
A safra dos novos projetos
Nunca deixa a desejar

Uma grande pena
Que a estação das realizações
Tarda chegar



terça-feira, 2 de julho de 2013

Raio X

A radiografia expõe tudo
Que tem dentro do corpo da gente

Só não mostra um
Registro do inconsciente

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Segunda

Ô, chuva!
Lava o que tem de lavar
Vai-te embora
Só não me conduza

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Haikais confessionais

I

O medo povoa
Se o pensamento não voa


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II

A lua vivia
Quando o sol jazia

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Gasto

O que fazer
para as minhas frases
Algum efeito ter?

Literatura estrangeira
Ou procurar inspiração
Embaixo do pé de laranjeira?

Tanta intelectualidade
Para ficar olhando pela janela
Toda essa passarela
De pedra, gente, pé e pó

Tanta ideia para ficar
Confortavelmente apoiada
Sobre essa escrivaninha surrada

Tanta indisposição e reflexão
Se prendem a esse chão
Pouco pisado por um coração

O que pode faltar 
É a coragem de gritar
Então melhor no imaginário [sem tocar]
Se agarrar

Porque dentro dos livros
Eles [ os sentimentos]
Sabem a hora de se esfarelar

sábado, 1 de junho de 2013

Ressaca


Acordei com dor de cabeça
Fui até a cozinha
Já era hora da sobremesa

Não entendi
Vi todos à mesa
E percebi

Que
a noite passou
mergulhei no sono

Sonhei que acordava
E já era dia, a hora corria
Eu nem via

Enquanto isso
Algo no dia se mexia
Era a vida que me fugia

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Um repente pro contemporâneo

Mexe com o ego de muito nego
Os atos políticos
Se vistos por um viés psicanalítico

Nos últimos dez anos
A massa passa menos fome
Até a empregada come danone

O classe média tira visto pro estrangeiro
E junta mais dinheiro

Mas é claro que rico vai reclamar
Ele não é mais único que tira foto no mar

E a doméstica exige a carteira assinada
Pra parar de chão esfregar


segunda-feira, 13 de maio de 2013

A Gullar


Algumas manifestações já foram magistralmente feitas, como este poema de Ferreira Gullar, sobre a incansável dissertação da poesia.

A Poesia

Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
Sem haste, juro!

Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
É de papel.

Não é como a açucena
Que efêmera
Passa.
E não está sujeito a traça
Pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
O meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:

“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família, afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? era muito?

Era uma fome azul e navalha uma vertigem de cabelos dentes cheiros que traspassam o metal e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco, 
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo 
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca 

E agora
recostada no divã da sala 

depois de tudo 
a poesia ri de mim

Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça


O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?) 
passa
A infância
passa
a ambulância
passa 


Só não passa, Ingrácia,
A tua grácia!

E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera


E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas 
e dos perfumes que dentro de mim gravitam feito pó
(e um dia, claro, ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso entre meus dedos. E só).


Poesia – deter a vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo 
como bala em cada não 
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-saro? O pás?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?

Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas 
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas 
e foge!
como chamá-lo? Pombo? 

Não: 
poesia, 
paixão
revolução

sexta-feira, 10 de maio de 2013

haikai

escrava
fico agarrada
à palavra




quinta-feira, 2 de maio de 2013

Chuva Interior

Um recado do genial Mario Chamie

Chuva Interior

Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.

Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.

Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.

Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.

Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava.

sábado, 27 de abril de 2013

Desassossegada

Talvez, ela seja só uma desassossegada
Pensa em fragmentos, muitas coisas, e tudo ao mesmo tempo
A vida prática se torna muito dura para quem sonha demais

Inclusive, porque, existe certo desânimo 
Para tirar algumas coisas das ideias e trazer aos dias físicos
Por vezes, se torna frustrante, inacabado

É engraçado e curioso como, apesar do sonho alimentar o homem de muitas sensações
É na realidade propriamente realizada, construída materialmente
Que aprendemos o valor que a realização material tem

Esta, talvez, seja apenas um caminho
Porque a realização imaginária das coisas também tem valor
Ela pode multiplicar-se, ser muitas, diversas, ilimitada

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Geografia


Com minha bagagem embarco 
Ora dura minutos, ora horas, ora dias 
Aterrisso como um turista morto de fome 

Em um ato antropofágico 
                       [Com mãos e boca] 
Caminho cada milímetro da sua geografia

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Poesia musicada

 Quando a poesia se emudece em mim
 Sempre há os que continuam fazendo dela a sua voz.











quinta-feira, 4 de abril de 2013

O armário


Ainda  não compreendi o que estava escrito ali
Confissões de um sedentário
Que passara anos escondido dentro de um armário

Rabiscava as paredes
E deixara minúsculos bilhetes
Afim de alguém que pudesse ouvir suas preces

Ele rogava por ser ouvido, que alguém lesse o que havia dito
Eram murmúrios, lamentações, iras e acusações
Não entendia porque havia nascido

Sempre pensou que não estava protegido
De alguma maneira, cobrava por seu coração ser tão partido
Sabia que sozinho não adiantava mais

Via vultos, figuras que vinham de algum lugar
O desespero e a sede o fizeram levantar
Ao sair, viu que havia tempo, conhecia aquela realidade

Mas andara engessado pela sua própria enfermidade

sexta-feira, 15 de março de 2013

Rilke e o amor


“Nenhum terreno na experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão de cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda a espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada, a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata, sem perigos e segura como os prazeres do público. No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem sua solidão.”

Rainer Maria Rilke

A única coisa que eu nao quero nessa vida é aprender a desamar.

terça-feira, 12 de março de 2013

Distração

Quando pensaria
que por estas ruas um dia andaria?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Soma

Quem diria que chegaríamos
A qualquer lugar
Achava que ia durar?

O tempo da vida, que passa
A tempestade chacoalhou

Enobreceu o que carrega dentro
No estômago revirado
A faísca borrada, o dorso surrado

Ficou.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Til



Através da tecla, enviei
De lá, ela perguntou o que era
Eu disse ‘til’, sorrindo
Se fez poema, em nada
Como se faz querer em qualquer palavra

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Como ia dizendo...

...as palavras vem e eu vou inalando
respiro fundo e elas saem flutuando

agarro uma e outra, no papel, são capturadas
não me importo se elas gostam de falar bem ou mal
da minha vida presente ou passada

elas tem vida própria
leem livro, jornal, escutam música
saem pra passear

tomam sorvete, viajam
voltam porque querem
tomam sol

vagueiam por mim
e saem assim

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Filme: O Som ao Redor (divagação)




O som ao redor é a constante martelada que tira o sono. Aos poucos, se faz mais e mais insuportável. É um caos silencioso, uma catástrofe muda. É a empregada que passa a roupa descalça e o patrão que corre o risco de sofrer um processo trabalhista, caso ela tome um choque. É o neto de família abastada que resolve roubar som de carro pra se divertir. É o cachorro do vizinho que uiva a noite toda.

Este som ao redor é aterrorizante, porque é capaz de motivar o som que vem de dentro, que está aparentemente bem protegido pelo muro, pela porta trancada, pela segurança particular. É um eco, não assumido, do preconceito, dos incômodos que as diferenças sociais são capazes de trazer.

A metáfora das distancias que existem, mas que se mantém, sem esforços, tão próximas dentro de uma sociedade, é expressa pelos ruídos que atiçam de dentro pra fora toda a podridão velada. Melhor começarmos a dar ouvidos e, melhor, tentar entender O Som ao Redor.

Uma letra qualquer sobre amor


                                             
Conversa comigo 
faz cafuné
cobre meu pé

ensaboa a barriga
veste a roupa
faz uma comida boa

diz que a mãe vai me aceitar como nora
me conta uma história

faz cara de boba
tira minha roupa
compra chocolate
divide e dá uma metade

faz planos
vai durar mais que os anos
o nosso amor

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Rotina parte I


                                             
A vulnerabilidade que a rotina - e os utensilios que fazem parte dela - traz é percebida quando se esta fora dela. 
Banheiro sem pia ou vaso sanitário; colchão diferente, lençol mal cheiroso; suco de mamão. 
Coisas banais que assustam pela maneira como chegam inesperadamente em sua vida e causam, inicialmente, desconforto, medo, fraqueza. 
O que nos mantém fortes? O pão que estamos acostumados a comer no café da manhã? A água quente que cai do chuveiro? A roupa passada que trocamos após o banho? 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Aos mineiros de Potosí

Dentro da montanha ñ há uma grande preocupaçao
Ñ é preciso esquentar os pensamentos até virarem carvao

Os homens que ali trabalham vivem o presente
Ñ sabem se irao sair e rever seus entes

O que eles fazem é oferecer a
Pachamama e a Tio sua fé

Esperam que em troca
Os deuses lhe deem uma generosa dose
De proteçao e que saiam da grande mina
Saos

(*revisao ortográfica será feita assim que eu tiver acesso a um teclado brasileiro. Digitado em um teclado castelhano.)