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segunda-feira, 13 de maio de 2013

A Gullar


Algumas manifestações já foram magistralmente feitas, como este poema de Ferreira Gullar, sobre a incansável dissertação da poesia.

A Poesia

Onde está
a poesia? Indaga-se
por toda parte. E a poesia
vai à esquina comprar jornal.

Cientistas esquartejam Puchkin e Baudelaire.
Exegetas desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.

Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
Meu poema é puro, flor
Sem haste, juro!

Não tem passado nem futuro.
Não sabe a fel nem sabe a mel:
É de papel.

Não é como a açucena
Que efêmera
Passa.
E não está sujeito a traça
Pois tem a proteção do inseticida.
Creia,
O meu poema está infenso à vida.

Claro, a vida é suja, a vida é dura.
E sobretudo insegura:

“Suspeito de atividades subversivas foi detido ontem o poeta Casimiro de Abreu.”
“A Fábrica de Fiação Camboa abriu falência e deixou
sem emprego uma centena de operários.”
“A adúltera Rosa Gonçalves, depondo na 3ª Vara de Família, afirmou descaradamente: ‘Traí ele, sim. O amor acaba, seu juiz.’”

O anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
o amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou

Era pouco? era muito?

Era uma fome azul e navalha uma vertigem de cabelos dentes cheiros que traspassam o metal e me impedem de viver ainda
Era pouco? Era louco, 
um mergulho
no fundo de tua seda aberta em flor embaixo 
onde eu morria

Branca e verde
branca e verde
branca branca branca branca 

E agora
recostada no divã da sala 

depois de tudo 
a poesia ri de mim

Ih, é preciso arrumar a casa
que André vai chegar
É preciso preparar o jantar
É preciso ir buscar o menino no colégio
lavar a roupa limpar a vidraça


O amor
(era muito? era pouco?
era calmo? era louco?) 
passa
A infância
passa
a ambulância
passa 


Só não passa, Ingrácia,
A tua grácia!

E pensar que nunca mais a terei
real e efêmera (na penumbra da tarde)
como a primavera


E pensar
que ela também vai se juntar
ao esqueleto das noites estreladas 
e dos perfumes que dentro de mim gravitam feito pó
(e um dia, claro, ao acender um cigarro
talvez se deflagre com o fogo do fósforo
seu sorriso entre meus dedos. E só).


Poesia – deter a vida com palavras?
Não – libertá-la,
fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-
esia – falar
o dia
acendê-lo do pó
abri-lo
como carne em cada sílaba, de-
flagrá-lo 
como bala em cada não 
como arma em cada mão

E súbito da calçada sobe
e explode
junto ao meu rosto o pás-saro? O pás?
Como chamá-lo? Pombo? Bomba? Prombo? Como?

Ele
bicava o chão há pouco
era um pombo mas 
súbito explode
em ajas brulhos zules bulha zalas 
e foge!
como chamá-lo? Pombo? 

Não: 
poesia, 
paixão
revolução

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